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A corrida pelos semicondutores virou peça central da disputa tecnológica contemporânea. Entre todas as nações que tentam garantir seu espaço nessa arena, nenhuma avança tão rapidamente quanto a China. A pauta da autossuficiência tecnológica virou prioridade máxima em Pequim, e o setor de chips, antes um ponto vulnerável, transformou-se no centro de uma estratégia nacional de longo prazo. Thiago de Aragão, analista político Hoje, começa a ficar claro que a China está perigosamente próxima de alcançar independência em áreas que eram quase monopólio dos Estados Unidos e de seus aliados. Isso mexe profundamente com o equilíbrio geopolítico global, com as grandes empresas do setor e com o futuro da própria inovação. Até poucos anos atrás, a China importava praticamente tudo o que havia de sofisticado em semicondutores. Dependia de fornecedores estrangeiros para inteligência artificial, supercomputação e boa parte da indústria moderna. Mas decidiu inverter essa lógica. Por meio de políticas industriais agressivas, investimentos estatais bilionários e incentivos fiscais capazes de remodelar cidades inteiras, o país passou a construir uma cadeia de semicondutores completa, capaz de operar desde o design até a fabricação e o encapsulamento. Não foi um movimento tímido. A China atraiu engenheiros de outros países, formou centenas de milhares de profissionais qualificados, ergueu parques industriais dedicados exclusivamente ao setor e começou a desenvolver seus próprios equipamentos e softwares. Ainda há setores sensíveis em que o país não alcançou a liderança, como a litografia ultravioleta extrema, mas o avanço foi tão rápido que o atraso deixou de ser determinante. A Huawei, por exemplo, conseguiu produzir um smartphone com chip nacional de 7 nanômetros, algo que poucos analistas consideravam possível em tão pouco tempo. Pequim persegue a meta de autossuficiência não como retórica, mas como projeto de Estado de longo prazo. Esse avanço chinês ocorre ao mesmo tempo em que a disputa geopolítica entre China e Estados Unidos atinge temperaturas inéditas. Para os americanos, chips avançados deixaram de ser apenas componentes industriais e passaram a ser tratados como ativos fundamentais de segurança nacional. A resposta de Washington foi endurecer as regras de exportação, restringindo profundamente o acesso chinês aos semicondutores mais sofisticados e às máquinas usadas para produzi-los. A China, por sua vez, lê essas restrições como tentativa de contenção e responde reforçando sua própria musculatura industrial. Ao limitar exportações de minerais estratégicos e ao aumentar a escala de investimentos internos, Pequim sinaliza que está preparada para travar sua própria batalha assimétrica. O que antes era uma disputa essencialmente econômica virou uma disputa sistêmica entre dois modelos de poder. Impacto nos EUA Nesse ambiente, as gigantes do setor começaram a sentir impactos muito concretos. A Nvidia foi a mais atingida. Por anos, dominou o mercado chinês de chips de inteligência artificial. Quando os Estados Unidos restringiram a exportação dos modelos mais avançados, a empresa viu sua participação ser praticamente zerada no maior mercado de IA do planeta. Tentou adaptar-se criando versões menos potentes de seus chips, mas até essas passaram a enfrentar risco de bloqueio. Ao mesmo tempo, empresas chinesas se posicionaram para ocupar o espaço deixado. A Huawei avançou agressivamente com seus próprios chips de IA e passou a abastecer grande parte dos projetos domésticos. Startups chinesas ganharam impulso imediato, amparadas por um governo disposto a substituição tecnológica acelerada. Para a AMD e a Intel, o cenário segue a mesma linha. A exigência de que data centers ligados ao Estado utilizem apenas chips nacionais reduziu as perspectivas de crescimento dessas empresas e deixou claro que o impulso à autossuficiência chinesa não será revertido. Mesmo em PCs e servidores comuns, cresce a aposta chinesa em projetar e fabricar suas próprias CPUs e GPUs, erosão lenta porém contínua do espaço das fabricantes americanas. A Qualcomm enfrenta um tipo diferente de vulnerabilidade. Quase metade de sua receita global depende do ecossistema chinês de smartphones. Se a China consolidar produção própria de chips móveis em escala industrial, e se empresas como a Huawei retomarem posição dominante nas redes 5G e nos aparelhos premium, a Qualcomm enfrenta o risco real de perder um de seus pilares de receita. Revisão de estratégias Enquanto tudo isso acontece, o resto do mundo tenta reagir. Os Estados Unidos lançaram o CHIPS Act para trazer fábricas ao território nacional e fortalecer sua indústria. A Europa adotou suas próprias medidas, tentando recuperar relevância num setor que abandonou décadas atrás. Japão, Coreia do Sul, Taiwan e Índia entraram na disputa com incentivos fiscais, diplomacia tecnológica e promessas de redução de dependência externa. Pela primeira vez em décadas, países passaram a reorganizar cadeias de suprimento não pelo critério econômico clássico, mas por alinhamento político e percepção de risco. A lógica é simples: amigos produzem com amigos. O preço é a perda de eficiência e o aumento dos custos. O ganho é a sensação, ainda que relativa, de segurança estratégica. Mesmo assim, fragmentar um sistema global tão integrado quanto o dos semicondutores significa mexer com toda a estrutura da economia digital. As cadeias que antes conectavam Japão, Taiwan, Holanda, China e Estados Unidos passam agora a se reconfigurar em blocos paralelos, fragmentando o que já foi o setor mais globalizado do planeta. É um processo lento, caro e turbulento, mas inevitável à medida que as tensões aumentam. Avanço chinês Tudo isso mostra que o avanço chinês na fabricação de semicondutores não é um fato isolado. Ele redefine mercados, geopolítica e modelos de desenvolvimento. Empresas como Nvidia, AMD, Intel e Qualcomm percebem que, mesmo sendo líderes históricas, perderam um mercado onde o jogo mudou de regras. Países percebem que o fluxo de tecnologia deixou de ser neutro e se tornou arma estratégica. Consumidores perceberão, nos próximos anos, que existem tecnologias que só estarão disponíveis em determinados blocos, enquanto outros seguirão caminhos diferentes. A história ainda está sendo escrita, e ainda é cedo para dizer quem terá a vantagem definitiva. Mas uma coisa é clara: a disputa por chips é hoje a disputa pelo controle do futuro digital, da inteligência artificial, da computação avançada, da defesa e de tudo que depende de processamento. A China está acelerando, e o resto do mundo precisa decidir se corre junto, se cria obstáculos ou se tenta reinventar o jogo. O século XXI será escrito, em grande parte, por quem dominar essa indústria. E esse domínio já não está tão concentrado quanto esteve no passado recente. |